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O avanço do curtailment e o desperdício da energia renovável

Por Laís Víctor – Especialista em energias renováveis e Diretora executiva


Em um momento em que o mundo clama por soluções sustentáveis, o Brasil se orgulha com razão de sua liderança em energias renováveis. Em 2024, mais de 85% da matriz elétrica nacional já vinha de fontes limpas, principalmente hídrica, solar e eólica, segundo o Ministério de Minas e Energia (MME). Mas por trás dos recordes de geração, cresce um problema incômodo e ainda pouco debatido: o curtailment. Sim, estamos falando do desperdício de uma energia que lutamos tanto para produzir.


O avanço do curtailment e o desperdício da energia renovável
O avanço do curtailment e o desperdício da energia renovável

De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em 2022 o país desperdiçou cerca de 4,7 TWh de energia eólica e solar, volume equivalente ao consumo anual de 2,3 milhões de residências ou de uma cidade inteira do porte de Brasília. E esse número não para de crescer: em 2023, os níveis de corte de geração chegaram a quase 6% da energia eólica produzida no Nordeste, uma das regiões mais promissoras do mundo para esse recurso (ONS, 2023).


Esse paradoxo expõe uma contradição estrutural. De um lado, celebramos a abundância do sol e dos ventos, atraindo bilhões em investimentos e colocando o Brasil entre os cinco maiores produtores de energia eólica onshore do planeta (IRENA, 2023). De outro, convivemos com o contrassenso de desligar turbinas e limitar a produção solar porque a rede elétrica não consegue absorver tudo o que é gerado.

A pergunta que não quer calar é: como é possível gerar eletricidade limpa em escala recorde e, mesmo assim, não a usar? Em tempos de crise climática, cada megawatt desperdiçado não é apenas uma perda econômica é também uma oportunidade perdida de reduzir emissões e acelerar a transição energética.


O paradoxo da abundância

O Brasil vive uma expansão acelerada da geração solar e eólica, impulsionada por investimentos privados, incentivos regulatórios e avanços tecnológicos. Só em 2024, a energia eólica ultrapassou 30 GW de capacidade instalada, enquanto a solar já soma 37 GW, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Isso coloca o país entre os seis maiores produtores de energia renovável do mundo, segundo a IRENA (2023), com destaque absoluto para o Nordeste, que sozinho concentra mais de 90% da capacidade eólica nacional (ABEEólica, 2024).


Mas há um paradoxo incômodo: essa abundância não chega integralmente ao consumidor final. Enquanto os ventos do Nordeste e do Sul giram turbinas em níveis recordes e o sol intenso ilumina parques solares em Goiás, Minas Gerais e Bahia, parte significativa dessa energia é cortada antes mesmo de ser aproveitada. O motivo é simples e estratégico: a rede elétrica de transmissão não acompanhou o ritmo da expansão da geração.


Segundo dados do ONS (2023), os gargalos de escoamento no Nordeste têm levado ao desligamento temporário de usinas eólicas e solares em momentos de pico, porque o sistema não consegue absorver toda a produção. Isso significa não apenas desperdício de energia limpa, mas também perda de receita para investidores e consumidores que poderiam estar pagando menos pela eletricidade.


Esse cenário revela uma contradição estrutural: somos capazes de gerar energia limpa em abundância, mas presos a uma infraestrutura pensada para o século passado centralizada, pouco flexível e lenta para se adaptar a um setor em rápida transformação. Enquanto comemoramos recordes de megawatts instalados, seguimos convivendo com a ironia de não conseguir utilizá-los plenamente.


Consequências invisíveis e custosas

Os impactos do curtailment vão muito além dos megawatts desperdiçados. Trata-se de um efeito em cascata que afeta toda a cadeia energética. Para os empreendedores, significa perda de receita, incerteza nos contratos e maior dificuldade em atrair capital para novos projetos. Para o setor como um todo, reduz a competitividade das fontes renováveis frente a alternativas fósseis, justamente no momento em que o Brasil poderia consolidar sua posição de liderança global.


Em 2023, a ABEEólica estimou que as perdas econômicas decorrentes do curtailment chegaram a R$ 1 bilhão, considerando receitas não realizadas e compensações contratuais. Esse valor não é apenas um número abstrato: ele reflete contratos descumpridos, fluxo de caixa comprometido e maior percepção de risco pelos investidores. Em outras palavras, o custo invisível é pago em confiança e previsibilidade ativos centrais para qualquer setor de infraestrutura.


Para o consumidor, os efeitos também são diretos. Cada megawatt perdido poderia reduzir o preço médio da energia no mercado regulado ou evitar o acionamento de termelétricas. Segundo a ANEEL (2023), o acionamento dessas usinas em períodos de escassez aumenta significativamente a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), encarecendo a tarifa paga pelos brasileiros. Além disso, o uso das térmicas eleva as emissões de gases de efeito estufa, contradizendo a narrativa de uma transição energética limpa.


Na prática, desperdiçar energia renovável significa prorrogar a dependência de fontes fósseis caras, poluentes e ineficientes. E mais: mina a credibilidade da transição energética brasileira. Afinal, como convencer investidores e a sociedade de que estamos preparados para liderar a descarbonização se continuamos jogando fora justamente a energia que deveria ser o motor desse futuro?


Estamos jogando contra nós mesmos?

Se por um lado o Brasil se posiciona como uma potência em energia renovável, por outro enfrenta uma contradição estrutural: produz mais eletricidade limpa do que consegue aproveitar. Cada vez que o sol nasce forte no semiárido nordestino ou o vento sopra com vigor no litoral sul, parte dessa energia corre o risco de ser desperdiçada porque não temos como armazenar, transmitir ou distribuir tudo o que foi gerado.


Essa limitação não é inédita. Países que avançaram rapidamente na geração renovável também enfrentaram gargalos semelhantes, mas encontraram soluções. A Alemanha, por exemplo, sofreu com altos índices de curtailment na década passada, mas investiu pesadamente em sistemas de flexibilidade. Hoje, conta com mais de 8 GW de capacidade instalada em baterias de armazenamento e adota mecanismos de mercado que remuneram a flexibilidade da rede, segundo a IEA (2023).


A China é outro caso emblemático. Em 2016, o país chegou a registrar taxas de curtailment acima de 17% na geração eólica, principalmente em regiões remotas como Xinjiang e Gansu. A resposta foi robusta: expansão das linhas de transmissão de ultra-alta tensão, implementação de redes inteligentes e criação de leilões específicos para contratação de flexibilidade. O resultado? Em 2022, o índice de desperdício caiu para menos de 3%, segundo a National Energy Administration (NEA) chinesa.


O Brasil, no entanto, ainda engatinha nesse debate. Temos projetos-piloto de armazenamento e estudos sobre redes inteligentes, mas nenhuma política pública estruturada para atacar o problema de frente. Continuamos comemorando recordes de capacidade instalada sem encarar a pergunta central: de que adianta gerar mais se não conseguimos usar o que já produzimos?


O que está em jogo

O curtailment é muito mais do que uma falha técnica ou um detalhe operacional: ele representa um risco estratégico de grandes proporções. Quando uma parte relevante da energia gerada é descartada, não se perdem apenas megawatts. Perde-se confiança, competitividade e credibilidade.


Para investidores, o problema é direto. Cada corte de geração ameaça contratos de compra e venda de energia (PPAs), reduz margens de retorno e eleva a percepção de risco do mercado. A BloombergNEF (2023) já alertava que países com alta penetração de renováveis e pouca capacidade de integração acabam espantando capital estrangeiro, justamente por não oferecerem previsibilidade. No Brasil, os cortes de energia renovável já resultaram em disputas contratuais e reavaliação de investimentos futuros.


Para consumidores, o impacto também é concreto. Cada megawatt desperdiçado poderia aliviar tarifas ou reduzir a necessidade de acionar termelétricas. O ONS (2023) mostrou que, em determinados períodos de pico, até 6% da energia eólica do Nordeste foi cortada. Ao mesmo tempo, térmicas caras e poluentes seguiram em operação, aumentando o custo repassado à tarifa final e elevando emissões de CO₂.

E, em um plano mais amplo, o desperdício mina a credibilidade da transição energética brasileira. Não basta bater recordes de megawatts instalados e celebrar rankings internacionais. O verdadeiro desafio está em transformar essa capacidade em energia efetivamente consumida algo que exige enfrentar gargalos de transmissão, acelerar investimentos em armazenamento e digitalizar a rede para torná-la mais inteligente e responsiva.


O futuro da energia não está apenas em gerar mais, mas em integrar melhor. Da produção ao consumo, é preciso construir um sistema flexível, descentralizado e preparado para cenários de alta variabilidade climática e de demanda. Ignorar isso é arriscar que a grande vantagem competitiva do Brasil sua abundância em fontes renováveis se transforme em um problema de credibilidade e perda de oportunidades.


Desperdício é escolha

O avanço do curtailment não pode ser tratado como um detalhe técnico ou uma consequência inevitável da expansão renovável. Ele é um sinal de alerta sistêmico. Não representa um fracasso da energia limpa pelo contrário, é a prova de sua força e crescimento. O que fracassa, na verdade, é o modelo de integração que não acompanhou essa evolução.


Como especialista que já esteve no campo, acompanhando obras, lidando com licenciamento e agora atuando na estratégia do setor, posso afirmar com clareza: o desperdício de energia limpa é uma escolha. É resultado de decisões políticas adiadas, de investimentos mal planejados e de uma visão ainda fragmentada da cadeia energética. Não faltam sol, vento ou tecnologia. Falta coragem de encarar a transição como algo sistêmico e de longo prazo.


As oportunidades estão diante de nós, e o Brasil precisa agir com estratégia. É urgente acelerar os leilões de capacidade, fundamentais para dar segurança ao sistema e valorizar a flexibilidade.


Ao mesmo tempo, o país deve investir em armazenamento, seja em baterias, hidrogênio verde ou soluções híbridas, garantindo que cada megawatt gerado seja realmente aproveitado no momento certo. Outro passo indispensável é fortalecer a digitalização da rede, com redes inteligentes, sensores em tempo real e maior descentralização da operação, tornando o sistema mais ágil e preparado para responder a eventos extremos. Por fim, é necessário avançar em novos modelos de comercialização, que permitam maior flexibilidade na gestão da demanda e previsibilidade para investidores, criando um ambiente mais sólido e confiável para a expansão das renováveis.


Enquanto países como Alemanha e China reduzem drasticamente seus níveis de curtailment com políticas integradas e tecnologias de ponta, nós seguimos desperdiçando aquilo que mais deveríamos valorizar: a chance de acelerar a transição energética com inteligência, previsibilidade e impacto real.


A provocação que deixo é simples: vamos continuar comemorando recordes de geração sem conseguir aproveitar toda essa energia, ou vamos finalmente assumir a responsabilidade de transformar abundância em eficiência? O futuro da transição energética no Brasil não será decidido pela quantidade de turbinas ou painéis instalados, mas pela capacidade de construir um sistema resiliente, integrado e preparado para entregar a energia limpa que já temos em mãos.


Sobre a autora 

Laís Víctor é especialista em energias renováveis e diretora executiva de parcerias, com 14 anos de atuação no setor de energia. Sua atuação inclui o desenvolvimento de negócios, estruturação de alianças estratégicas e apoio à atração de investimentos para projetos de transição energética, com foco na construção de ecossistemas sustentáveis e inovação no mercado global de renováveis. 


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