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Curtailment no Brasil: O Paradoxo de cortar renováveis e acionar térmicas em pleno século XXI

Por Laís Victor – Especialista em energias renováveis e Diretora executiva de parcerias.


O ano de 2025 marcou um novo capítulo para o setor elétrico brasileiro, revelando de forma ainda mais evidente o descompasso entre a rápida expansão da geração renovável e a capacidade do sistema de absorvê-la.


Curtailment no Brasil: O Paradoxo de cortar renováveis e acionar térmicas em pleno século XXI
Curtailment no Brasil: O Paradoxo de cortar renováveis e acionar térmicas em pleno século XXI

Segundo os painéis públicos de operação do ONS, a geração eólica e solar alcançou patamares históricos de participação na matriz elétrica. Ao mesmo tempo, os próprios registros do operador mostram um aumento recorrente dos episódios de restrição de geração popularmente conhecidos como curtailment quando usinas renováveis precisam reduzir sua produção por limitações da rede.


Os painéis oficiais do ONS mostram que, ao longo dos últimos anos, esses cortes deixaram de ser eventos pontuais e passaram a fazer parte da rotina do Sistema Interligado Nacional, especialmente em regiões onde a expansão da transmissão não acompanhou o ritmo acelerado da oferta renovável. Esse cenário contrasta com a vocação do país: de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o Brasil possui uma das matrizes mais renováveis do mundo, com mais de 50% da geração elétrica nacional proveniente de fontes hidráulicas, solares e eólicas proporção que tem crescido ano após ano.


O paradoxo se intensifica quando observamos que, mesmo em dias de elevada disponibilidade de vento e sol, o despacho térmico segue sendo acionado para garantir segurança operativa. Na prática, isso significa que o país convive simultaneamente com o aumento da capacidade renovável, a ampliação de restrições à sua utilização e o uso persistente de fontes mais caras e emissoras.


Essa combinação revela um ponto de inflexão para o setor elétrico: o desafio já não é apenas expandir a geração limpa, mas garantir que o sistema esteja preparado para utilizá-la plenamente. E o avanço dos registros de curtailment agora documentados de forma transparente em plataformas oficiais torna impossível ignorar a necessidade de modernização estrutural do modelo brasileiro.


O curtailment não revela excesso de energia — revela falta de planejamento

É comum ouvir afirmações de que o Brasil já produz “energia demais”. Porém, estudos recentes de planejamento da transmissão conduzidos por EPE e ONS mostram o oposto: o sistema de transmissão não acompanhou a velocidade da expansão renovável, especialmente no Nordeste, região que concentra mais de 85% da potência eólica instalada no país.


A Programação Anual de Estudos da Transmissão 2025, publicada pela EPE em conjunto com o ONS, já apontava como prioritários os reforços nos corredores de escoamento do Nordeste para o Sudeste, justamente pelo avanço mais rápido da geração renovável em relação à expansão da rede. Em paralelo, A Nota Técnica LRCAP/2025, elaborada por EPE e ONS, já indicava que a capacidade remanescente de escoamento em diversos corredores estratégicos estava próxima do limite, restringindo a entrada de novos projetos renováveis.


Portanto, não sofremos de abundância. Sofremos de desalinhamento crônico entre expansão da geração e expansão da transmissão, um gargalo que distorce preços, aciona termelétricas desnecessariamente e penaliza o consumidor.


Da MP 1.304 à Lei 15.269/2025: o que realmente muda para o curtailment

A Lei 15.269/2025 representa um passo importante na modernização do setor elétrico ao ampliar a abertura gradual do mercado livre, reorganizar encargos setoriais e estabelecer diretrizes para novas tecnologias, como o armazenamento de energia. Também promove ajustes relevantes nas regras de comercialização do gás natural, compondo um novo arranjo estrutural para o setor.


No entanto, quando o tema é curtailment, o avanço é bem mais limitado. O dispositivo que previa um mecanismo mais amplo de ressarcimento por restrição de geração foi vetado, mantendo o assunto no âmbito regulatório da ANEEL e, portanto, ainda sem solução clara ou definitiva. O recado é evidente: embora urgente, o problema dos cortes de energia renovável permanece sem tratamento legislativo específico.


Em outras palavras, a Lei 15.269 moderniza partes essenciais do modelo elétrico, mas deixa intocado justamente o ponto que mais afeta a competitividade das fontes limpas. O curtailment segue sendo tratado como um efeito colateral da operação, e não como um risco estrutural que compromete investimentos, sinalização de longo prazo e a própria coerência da transição energética brasileira.


Por que continuamos acionando térmicas mesmo com sobra de renováveis?

Mesmo diante de sucessivos recordes de geração renovável, o Brasil segue recorrendo ao acionamento de térmicas um fenômeno que, à primeira vista, parece contraditório. Mas a explicação está em pilares estruturais do nosso modelo elétrico, concebido para uma realidade que já não existe.


Grande parte das térmicas brasileiras opera sob contratos inflexíveis, que determinam sua utilização mesmo em momentos de baixa necessidade energética. Ou seja, ainda que haja abundância de vento e sol, compromissos contratuais obrigam o sistema a despachar usinas térmicas, independentemente de sua competitividade econômica naquele instante.


O modelo atual de formação de preços, baseado predominantemente em um sinal de referência nacional, tende a suavizar diferenças regionais e, por isso, não reflete de forma clara os congestionamentos reais da rede especialmente nos corredores renováveis do Nordeste.


Outro fator decisivo é a prioridade operativa atribuída aos recursos hidráulicos. Preservar reservatórios continua sendo um objetivo legítimo para a segurança energética, mas essa estratégia frequentemente implica reduzir a participação da geração renovável justamente nos horários de maior produção, abrindo espaço para o despacho térmico ou para o corte de eólicas e solares.


O sistema ainda carece de instrumentos modernos de flexibilidade, como armazenamento em larga escala ou mecanismos de resposta da demanda. Sem essas ferramentas, a operação fica presa a soluções tradicionais que não conversam com a natureza variável e cada vez mais dominante da matriz renovável brasileira.


O resultado é um arranjo que continua funcionando sob a lógica do século passado, enquanto a oferta de energia já opera em velocidade e complexidade próprias do século XXI. Esse desalinhamento gera ineficiências, aumenta custos e prejudica a plena integração das fontes limpas, criando um paradoxo energético que o Brasil precisa enfrentar com urgência.


Baterias são parte da solução — mas não resolvem sozinhas

O debate sobre armazenamento ganhou força à medida que o curtailment se tornou mais frequente no país. A Lei 15.269/2025 estabelece diretrizes para a regulamentação da atividade de armazenamento de energia, atribuindo à ANEEL a responsabilidade de desenvolver um arcabouço específico para esse tipo de recurso. No mesmo sentido, a Consulta Pública nº 39/2023 aprofundou a discussão sobre o papel das baterias na operação e no planejamento do sistema elétrico.


Estudos oficiais, como o Caderno de Micro e Minigeração Distribuída e Baterias do PDE 2035, elaborado pela EPE, apontam que o armazenamento tende a desempenhar funções estratégicas nos próximos anos. Entre elas, a capacidade de reduzir cortes em horários de pico da geração solar, aliviar congestionamentos locais, contribuir para a estabilidade e qualidade da rede e habilitar novos modelos de negócio, especialmente em sistemas híbridos e soluções atrás do medidor.


Mas o armazenamento não substitui, nem substituirá, a necessidade urgente de ampliar a infraestrutura de transmissão, revisar critérios de despacho e modernizar a formação de preços. Sem resolver as causas estruturais, as baterias se tornam apenas um paliativo caro.


O que realmente está em jogo

O avanço do curtailment no Brasil vai muito além de um desvio operacional: ele revela um ponto crítico da nossa trajetória energética. Não estamos desperdiçando apenas energia estamos desperdiçando oportunidade. Em um país com recursos renováveis abundantes e custo competitivo, torna-se evidente que o problema não é falta de oferta, mas falta de coerência entre o modelo que temos e o futuro que afirmamos querer liderar.


Se quisermos, de fato, ocupar posição de protagonismo na transição global, precisaremos assumir escolhas mais maduras. Isso inclui ampliar a capacidade de transmissão, corrigir distorções que mantêm térmicas operando em pleno excedente renovável e construir regras transparentes para lidar com os cortes sem desestimular novos investimentos.


Também será indispensável incorporar flexibilidade ao sistema por meio de armazenamento, soluções híbridas e mecanismos de resposta da demanda e modernizar a formação de preços para refletir a realidade de um sistema cada vez mais dinâmico.


O Brasil já dispõe da energia que o mundo deseja.


O que ainda falta é a coragem de ajustar o modelo para que essa energia seja usada de forma inteligente, eficiente e estratégica. O curtailment não é um acidente inevitável: é fruto de escolhas institucionais. E, justamente por ser resultado de decisões e não de limitações naturais pode e precisa ser corrigido. O Brasil tem condições de liderar a transição energética global, mas isso exige um modelo capaz de absorver toda a energia limpa que já produz.


Sobre a autora 

Laís Víctor é especialista em energias renováveis e diretora executiva de parcerias, com 15 anos de atuação no setor de energia. Sua atuação inclui o desenvolvimento de negócios, estruturação de alianças estratégicas e apoio à atração de investimentos para projetos de transição energética, com foco na construção de ecossistemas sustentáveis e inovação no mercado global de renováveis. 


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