DSO: A arquitetura invisível por trás da revolução do Mercado Livre de Energia
- Marcelo Figueiredo | Fractal Networks
- há 47 minutos
- 4 min de leitura
Por Marcelo Figueiredo | Fractal Networks
Enquanto os holofotes do setor elétrico brasileiro se concentram na universalização do mercado livre de energia com a promulgação da Lei n° 15.269/2025 a partir da MP 1304, há uma transformação subjacente e de maior complexidade técnica que determinará o sucesso ou o fracasso dessa abertura: a migração operacional e regulatória do Distribution Network Operator (DNO) para o Distribution System Operator (DSO).

Esta é a inovação estrutural que capacita a rede a lidar com a descentralização, e sua pouca relevância pública é inversamente proporcional à sua criticidade para o futuro energético do país.
O Foco Distorcido do Mercado: Transação vs. Transformação
A abertura do mercado livre é uma mudança de natureza comercial e regulatória. Ela redefine o comportamento do consumidor. Já a transição para DSO é uma mudança de natureza tecnológica e operacional que redefine a capacidade da rede.
A Lei 15.269, ao expandir o acesso ao mercado, acelera a penetração de Recursos Energéticos Distribuídos (REDs), como a Geração Distribuída (GD) e o armazenamento de energia. Sem o modelo DSO, esta descentralização resultaria em instabilidade e deterioração da qualidade do serviço.
Afinal, qual é o papel e responsabilidades do DNO e do DSO?
A diferença entre DNO e DSO reside na gestão da complexidade e da bidirecionalidade do fluxo de energia. O DNO é um gestor de ativos físicos, enquanto o DSO é um orquestrador digital do sistema.
No modelo DNO (Distribution Network Operator), a rede é essencialmente passiva, limitando-se à função de transporte de energia em sentido unidirecional e à manutenção da infraestrutura física; sua base tecnológica foca em equipamentos robustos e sistemas SCADA centralizados, tipicamente restritos às subestações, o que se torna um desafio insustentável com a proliferação de Recursos Energéticos Distribuídos (REDs), pois a injeção da Geração Distribuída (GD) provoca a elevação de tensão (voltage rise) e intermitência, sobrecarregando severamente o controle inerentemente passivo da rede.
O DSO (Distribution System Operator) representa a Rede Ativa e Inteligente, exigindo um investimento massivo em Smart Grids para transformar equipamentos passivos em
pontos de coleta de dados e atuação em tempo real. Essa transformação é suportada pela digitalização das redes, que depende de uma infraestrutura de tecnologia e comunicação de ponta, incluindo a massificação de Medição Inteligente (Smart Metering - AMI) e a integração de sistemas ADMS (Advanced Distribution Management Systems), combinando SCADA, DMS (Distribution Management System) e OMS (Outage Management System), cuja granularidade de dados permite identificar e corrigir anomalias localizadas em tempo de milissegundos.
Além disso, o DSO implementa o Gerenciamento de Tensão Ativo, utilizando dispositivos como reguladores de tensão em campo, smart inverters de Geração Distribuída (GD) e bancos de capacitores controlados remotamente para manter os níveis de tensão dentro dos limites regulatórios, mesmo com a intermitência de fontes renováveis, sendo este o alicerce para a massificação segura da GD.
A função mais inovadora é o Desenvolvimento de Mercados de Flexibilidade, onde o DSO compra ativamente serviços de flexibilidade de Recursos Energéticos Distribuídos (REDs), como baterias, GD despachável e Resposta da Demanda, para gerenciar congestionamentos localizados, configurando-se como a alternativa econômica aos investimentos em reforço de rede, conhecidas como Non-Wires Alternatives (NWA).
O Case Britânico: Do DNO Regulado ao DSO Ativo
O Reino Unido é um dos exemplos mais avançados na transição, impulsionada pelo regulador Ofgem através do modelo de incentivos RIIO (Revenue = Incentives + Innovation + Outputs).
A partir de 2015, na primeira onda de implementação do modelo RIIO, as distribuidoras (DNOs) começaram a receber incentivos para projetos de inovação focados em testes de Smart Grid e integração de recursos distribuídos. O objetivo era provar a viabilidade técnica de operar a rede de forma mais inteligente.
Na sequência a Ofgem exigiu que as empresas evoluíssem para o modelo DSO, sendo obrigadas a comprar flexibilidade de geradores e consumidores para resolver gargalos. Por exemplo, em vez de gastar milhões em um novo transformador (reforço tradicional), o DSO contrata um parque de baterias ou um grande consumidor para reduzir ou injetar potência em momentos críticos.
Como resultado prático desta abordagem, a rede UK Power Networks (UKPN), por exemplo, tornou-se líder na criação de Mercados de Flexibilidade Local, demonstrando que a DSO não é apenas uma obrigação técnica, mas uma oportunidade de otimização de capital (CAPEX), diferindo reforços de rede caros e otimizando o uso dos ativos existentes através de software e mercado.
A Lei 15.269/2025 e a Agenda Brasileira para DSO
Para o Brasil, a Lei 15.269/2025 e o contexto regulatório da ANEEL devem absorver as lições internacionais. O avanço do DSO aqui implica em:
Revisão Tarifária e Remuneração: É preciso criar mecanismos regulatórios que permitam e incentivem o DSO a investir em digitalização e a contratar serviços de flexibilidade (OPEX) em vez de focar apenas no CAPEX.
Separação Funcional: Deve-se definir claramente o papel do DSO (neutro e operador do sistema) em relação ao papel de Comercializador da distribuidora (para garantir a concorrência e evitar o conflito de interesse no mercado de flexibilidade).
Cibersegurança: A digitalização profunda da rede de distribuição (Smart Grid) eleva a vulnerabilidade a ataques cibernéticos, exigindo protocolos e investimentos robustos em cibersegurança, uma área crítica para a confiabilidade do DSO.
Conclusão: A Complexidade Necessária
A transição DNO-DSO é a revolução de infraestrutura que viabiliza a revolução de mercado que a Lei 15.269/2025 promete.
Enquanto a abertura do mercado livre democratiza o acesso e a escolha, o DSO democratiza a operação da rede, transformando cada recurso distribuído (seja um painel solar, uma bateria residencial, ou um carregador de VE) em um potencial provedor de serviço.
Se o Brasil não acelerar a agenda do DSO, com a profundidade técnica e os incentivos regulatórios adequados, corre o risco de construir um mercado livre sobre uma infraestrutura tecnologicamente obsoleta, comprometendo a qualidade e a segurança do suprimento.
O desafio é grande, mas a recompensa é uma rede mais resiliente, eficiente e apta à descarbonização.
DSO: A arquitetura invisível por trás da revolução do Mercado Livre de Energia








